terça-feira, junho 03, 2008

Apenas crianças

Eu amo crianças Esta foi a frase do personagem de Ed Harris ao ser morto no filme Gone Baby Gone, quando confundido com o raptor de uma criança.

A fala do personagem caiu sobre meus ombros, como o peso do mundo, e meus olhos ficaram nebulosos por um instante. Pensei em tantas crianças que vejo nas ruas, sofrendo, chorando, com fome. Busquei, na memória, o número de vezes em que vi uma criança caída na calçada e não me emocionei. É difícil dizer, mas não importa mais. Acostumamo-nos com o feio, o imprudente, o nojento. Acostumamo-nos com a sujeira, com a nudez infantil, com a conversa adulta de meninas de 8 anos. Lembrei do dia em um amigo me contou que ele e seus irmãos foram estuprados, diversas noites, pelo pai. Ainda lembro do rosto dele, de sua voz embargada, contando algo tão íntimo, tão triste, e tão indigno. Lembro que chorei ao saber, que fiquei dias imaginando as cenas, e que elas eram vivas em minha mente, como se estivesse . Porém, pouco tempo depois, a idéia estava dentro de mim, como parte de uma vida real e impune, que nada mais se pode fazer.

Hoje, no ônibus, duas crianças de, aproximadamente, 7 anos sentaram no banco atrás do meu. O menino estava contando acerca de uma surra que havia levado ontem, e contou sua travessura. A menina respondeu Você não sabe o que é uma surra. Eu apanho todos os dias. A minha avó, qualquer dia, vai me matar. Olha as marcas no meu braço.” Quando a menina disse isto, olhei para trás, e o que vi me causou náusea; senti um soco em meu estômago, o soco da verdade, nua e crua: os braços estavam marcados, com manchas e arranhões. A menina mostrava, como algo naturalmente simples. Tentei imaginar o que ela teria feito todos esses anos, para que apanhasse tão grosseiramente, para que andasse com marcas visíveis, para que concordasse em sentir o peso de uma mão adulta todos os dias.

Ao digitar pedofilia, no Google, pensei encontrar artigos, opiniões, textos informativos, algo que me mostrasse que a humanidade ainda se importa, que aindapessoas sofrendo ao pensar em crueldade tamanha, porém, a decepção não tardou a chegar, quando, na primeira página, me deparo com um a divulgação de um site gritando: Busca aqui! Imagens: Pedofilia! Meninas de 13 anos transando!

Às vezes tento imaginar quando, em que banco de praça, o homem deixou seu amor. Tento entender como o homem, criatura de Deus, desistiu da bondade, plantada por Ele. O amor deixou de ser dom de todos, e passou a ser raridade. É difícil encontrar alguém bom, e, quando esse alguém é encontrado, elogios não lhe faltam. Por quê? Porque não é fácil encontrarmos bondade no mundo.

Desci do ônibus impura,indigesta. Pensei em minha vida, em meus problemas, e vi que não possuía nenhuma parcela de problema que me tirasse o sono. Pensei na menina surrada, doída – por dentro e por fora. Será que é somente surra? Será que durante a noite, alguém não atravessa o quarto e a acaricia? Será que a vida dela a mostra quem ela é? Com que imagem de família, de amor, ela vai crescer?

A definição de lar, no dicionário: casa de habitação, casa, família. Mais de 60% dos casos de abuso sexual infantil são praticados dentro de casa. Esta estimativa deixou-me com o coração ferido. Pais, mães, tios, avós, primos... pessoas que confiamos, pessoas com as quais nos sentimos à vontade para falar qualquer coisa. São estas as pessoas mais cruéis nos casos de pedofilia. Uma criança maltratada, estuprada, enganada, em seu próprio lar, jamais terá a chance natural de constituir uma outra família. Uma criança sem amor, sem proteção, fadada ao preconceito social, ao choro comedido, à vergonha, ao fardo que se carrega sozinho. Este é o retrato da criança que sofreu com abusos no local onde deveria ser seu refúgio.

O Brasil, um país rico em belezas naturais, em gente bonita, em simpatia, também é rico na exploração infantil, no tráfico de drogas envolvendo menores, na quantidade de crianças nas ruas. Um país abençoado, se amaldiçoou, curvando-se para o preconceito, fechando os olhos para as mãos dos pedintes nas ruas, fingindo não ver o choro do que sofre e sente dor.

Criançaseu pensei – são apenas crianças, traídas pelo ser humano, pelas mãos que as acariciaram no ventre, por aqueles que prometeram amar, cuidar e batizar. Traídas pela confiança, pelo senso natural de acreditar em quem nasce na família, no mesmo sangue.

Em que tipo de família criamos nossos filhos? Que tipo de lar os acolhe? Que tipo de adultos elas se tornarão? Que tipo de exemplos elas terão?

Quem são as crianças que morrem todos os anos de depressão? Quem são elas? E por quê? Porque nós ainda permitimos isso?

Eu amo as crianças.

1 comentários:

Éverton Vidal Azevedo disse...

Acabei de publicar o texto lá no meu blog, com um pequeno "post scripitun" rs.

Inté!